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Patrícia Martins: “Temos uma sociedade estruturada na exploração do trabalho das mulheres, gratuito e invisibilizado”


No relatório da Amnistia Internacional sobre “os direitos humanos que ainda não se podem comemorar em Portugal”, apresentado no 70º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, sublinha-se que “as mulheres continuam a ser as mais afetadas pela violência de género”. Com tradução prática no aumento do número de femicídios em 2018, no facto de o número de condenações por violência doméstica ser residual quando comparado com o número de participações registadas pelas forças de segurança, ou nos estereótipos de género patentes em acórdãos de tribunais relativos a casos de violência sexual. Este relatório torna mais premente a realização da Greve Feminista em Portugal, convocada para o dia 8 de março de 2019?

O relatório da Amnistia Internacional torna visível dois problemas fundamentais que as mulheres enfrentam no nosso país: violência e justiça machista. Estamos muito conscientes deles, tanto que para os combater as mulheres tomaram várias vezes o espaço público, denunciando a desigualdade, a violência e o assédio, a justiça machista e reclamando o seu lugar por inteiro no mundo da cidadania e dos direitos, nomeadamente o direito a não morrer às mãos de um agressor. Nos últimos anos, são as manifestações contra as diversas formas de violência machista que têm tido maior expressão e uma maior reação social em Portugal. Se a violência, na maioria dos casos, é contra as mulheres, também caminhamos no sentido de uma feminização da resistência à violência estrutural que afeta sobretudo as mulheres.

Desde 2016 que os movimentos internacionais feministas – tais como o as segundas-feiras negras na Polónia; o movimento “Ni una Menos” da América Latina; “Women’s March”, o manifesto “Feminismo para as 99%” e a campanha “Me Too” iniciadas nos Estados Unidos da América; a “Huelga Feminista” em Espanha – têm sido fundamentais no fortalecimento das redes feministas em Portugal e na definição das nossas ferramentas de intervenção política. Isto é, no próximo dia 8 de março de 2019, queremos parar porque sabemos que uma Greve Feminista é uma forma de fortalecer uma maioria: as mulheres. É um instrumento social e político para a sua emancipação.

 

O manifesto da Greve Feminista estabelece quatro planos de ação: “Faremos greve ao trabalho assalariado, ao trabalho doméstico e à prestação de cuidados, ao consumo de bens e serviços e greve estudantil”. Porque é que optaram por múltiplas formas de protesto? Para realçar que a desigualdade de género é um problema estrutural e transversal na sociedade portuguesa, não se cingindo apenas à vida laboral das mulheres?

A Greve feminista tem o objetivo de tirar de debaixo do tapete as diversas desigualdades e violências que as mulheres enfrentam. Como elas são várias, os eixos em que a Greve se constrói também o são, exatamente para demonstrar que não são casos pontuais, mas que fazem parte da forma como a nossa sociedade se estrutura. A Greve procura visibilizar as 24 horas de cada dia. Todas as mulheres trabalham, umas fazem-no no setor formal e enfrentam a desigualdade salarial e a pressão sobre as suas escolhas quanto à maternidade; outras trabalham no setor informal, sem contrato e sem direitos, e enfrentam remunerações abaixo do permitido por lei e nenhuma proteção social. Todas acumulamos o trabalho fora de casa com o trabalho doméstico e dos cuidados, o que nos rouba tempo de descanso, lazer e disponibilidade para a formação contínua, seja profissional, seja motivada por outros interesses pessoais.

A sociedade de consumo reconhece-nos como consumidoras e não como cidadãs, propagando uma cultura machista que, sustentada em estereótipos, retalha os nossos corpos e as nossas identidades, nos impõe medidas-padrão e ideais de beleza, colonizando as nossas vidas e os nossos corpos, inculcando um estado de guerra permanente entre aquilo que somos e queremos ser e aquilo que esperam que nós sejamos. Nas escolas, continuamos a conhecer apenas uma parte da História. Não conhecemos a nossa História, porque os currículos nos invisibilizam. A tudo isto se soma a praxe, que é sempre violenta, exatamente porque a violência não é apenas física. As ideias que se veiculam nas praxes são machistas, diminuem as mulheres, achincalha-nos e no meio daquilo que designam como “brincadeira”, os estereótipos e os preconceitos fazem o seu caminho naturalizando-se.

 

“A sociedade de consumo reconhece-nos como consumidoras e não como cidadãs, propagando uma cultura machista que, sustentada em estereótipos, retalha os nossos corpos e as nossas identidades, nos impõe medidas-padrão e ideais de beleza, colonizando as nossas vidas e os nossos corpos, inculcando um estado de guerra permanente entre aquilo que somos e queremos ser e aquilo que esperam que nós sejamos”.

 

A desigualdade de género no trabalho assalariado, sobretudo ao nível dos salários, progressão na carreira, acesso a cargos dirigentes, é um fenómeno mais tangível e passível de ser debelado através de políticas públicas, ou através de leis. O mesmo não se aplica ao trabalho doméstico, na medida em que se trata de uma desigualdade consentida pelas mulheres (ou seja, ninguém é obrigado a viver com outra pessoa que não partilha as tarefas domésticas). Como é que se poderá agir relativamente a este problema no âmbito da implementação de políticas públicas?

Discordo da ideia de desigualdade consentida. Para haver consentimento, pressupõe-se que houve debate e negociação, mas a nossa experiência é bem diferente. A assunção das tarefas domésticas e do cuidado por parte das mulheres não resulta, na esmagadora maioria das vezes, de uma escolha, mas de uma tradição profundamente machista. A vida não é tão simples que nos permita aceitar o argumento de que “ninguém é obrigada a viver com quem não partilha as tarefas domésticas”. É um argumento falacioso, como o é a sua adaptação aos contextos de violência doméstica: “ninguém é obrigada a viver com um agressor”. A desigualdade não é consentida, está é naturalizada. E muitas vezes esses processos de naturalização até vêm embrulhados em discursos supostamente elogiosos, aqueles que destacam a particular aptidão das mulheres para o trabalho doméstico e do cuidado.

No entanto, o que temos é uma sociedade estruturada na exploração do trabalho das mulheres, um trabalho que garante que a sociedade funciona, gratuito e invisibilizado. Esta forma de exploração beneficia os homens de uma forma geral, mas o grande beneficiário é precisamente o Estado, que por esta via se demite das suas obrigações sociais. É, pois, possível responder a esta desigualdade de duas formas principais: pela tomada de consciência do lugar de privilégio que a maioria dos homens ocupa nas relações familiares e consequente mudança de atitude e partilha de todas as tarefas e responsabilidades domésticas, por um lado, e assunção das tarefas sociais do Estado, da rede pública de creches às residências assistidas e de cuidados continuados, das cantinas às lavandarias públicas. Reconhecer o estatuto de cuidador/cuidadora informal é questão a que o Estado social pode responder.

 

A gravidez é um determinismo biológico que está na base da desigualdade de género no trabalho assalariado, motivando discriminações e prejudicando as mulheres na suas carreiras profissionais. Em vez de aumentarem a pressão social e cultural sobre as mulheres para terem filhos, as denominadas “políticas de natalidade” não deveriam focar-se em garantir a igualdade de responsabilidades entre o pai e a mãe? Por exemplo, tornando a licença de paternidade obrigatoriamente equivalente à licença de maternidade? Se a gravidez implicasse o mesmo período de ausência do trabalho para o pai e para a mãe, o género do trabalhador não passaria a ser irrelevante para o empregador?

As políticas de natalidade funcionam muitas vezes como uma espécie de chantagem e violência sobre as mulheres. Insinua-se o seu egoísmo por não terem ou terem cada vez menos filhos, abordam-se os números, conclui-se que as famílias têm cada vez menos filhos e que isso tem um forte impacto na sustentabilidade das sociedades. Todavia, há um dado nos estudos que geralmente é ignorado, aquele que refere as mulheres que querem ser mães e não podem, porque a sua condição económica e/ou social não o permite. Como entendo que a maternidade é um direito e não uma obrigação, para mim este dado é muito relevante e não pode ser ignorado.

Concordo que os direitos/responsabilidades relativos à parentalidade devem ser alargados aos membros da parelha, mas temo que isso seja apenas uma parte da resposta necessária. A verdade é que sem sistema público de creches e infantários, sem salários que permitam fazer face às despesas que necessariamente aumentam com a chegada de crianças, sem redução do horário de trabalho que permita que as relações de parentalidade sejam efetivas, o alargamento dos direitos a ambos os sexos, por justo e necessário que seja, apenas distribui o sufoco. A sociedade como um todo, mas em particular o Estado e as entidades empregadoras, têm de aceitar que a maternidade e a paternidade não são custos sociais, mas ganhos sociais. Enquanto o encararem como custo, as pessoas que decidem ter filhos continuarão a ser heroínas. Mas nós não queremos uma sociedade de heroínas e heróis, queremos uma sociedade de direitos, uma sociedade em que a maternidade e a paternidade não sejam direitos descartados por constrangimentos de diversa ordem, nomeadamente a económica.

 

“A verdade é que sem sistema público de creches e infantários, sem salários que permitam fazer face às despesas que necessariamente aumentam com a chegada de crianças, sem redução do horário de trabalho que permita que as relações de parentalidade sejam efetivas, o alargamento dos direitos a ambos os sexos, por justo e necessário que seja, apenas distribui o sufoco”.

 

No manifesto identificam-se algumas reivindicações concretas: salário igual para trabalho igual, reposição da contratação coletiva como forma de proteger o trabalho e combater as desigualdades, uma escola empenhada na educação sexual inclusiva, gratuitidade dos produtos de higiene, alteração da lei da nacionalidade, etc. O sucesso da Greve Feminista será medido pelo grau de concretização destas reivindicações? Ou será uma iniciativa mais centrada no plano simbólico, alertando para a violência e desigualdade de género e apelando a uma mudança de comportamentos e mentalidades?

O sucesso da Greve Feminista é mensurável desde o dia em que decidimos convocá-la. Queremos que as mulheres parem, evidentemente, porque essa é a forma de mostrarmos à sociedade que sem nós ela não funciona. No entanto, cada passo que damos neste processo de construção é um ganho. Antes de começarmos o processo de construção da Greve Feminista, não estávamos articuladas. Hoje temos núcleos no Porto, em Lisboa e Coimbra, os locais de sempre, mas também em Amarante, Viseu, Belmonte, Covilhã, Fundão, Vila Real, Braga. Estamos a caminho de Aveiro e Viana do Castelo.

Isto é uma vitória enorme e é ela que nos permite construir a Greve e continuar o caminho para além dela. Sabemos que no dia 9 de março o país não terá mudado tanto como queremos e precisamos, mas sabemos também que nada será como antes. Temos reivindicações concretas e queremos respostas, mas queremos também que o país saiba e assuma que há problemas sérios de desigualdade, exploração e opressão. Ter consciência deles, visibilizá-los, discuti-los e avançar respostas serão importantes vitórias. E nada disto é simbólico, pelo contrário, é muito concreto.

 

As críticas à sociedade de consumo, à destruição ambiental e à repressão dos migrantes são vertentes do protesto em que a questão de género não é tão evidente. Por exemplo, as alterações climáticas não afetam os homens como as mulheres? Porque é que incluíram esses temas no manifesto?

As mulheres representam 43% da mão de obra agrícola no mundo. Representam também 70% dos pobres, com diferenças de rendimentos – em comparação com os homens – que podem chegar aos 50%. Produzem entre 60 e 80% dos alimentos dos países em desenvolvimento, sobretudo nas regiões mais pobres, e têm mais dificilmente do que eles acesso a recursos como a terra, o crédito e acesso à educação. Quando há seca, são as mulheres que têm de caminhar mais quilómetros para ir buscar água. Os papéis tradicionais que lhes estão destinados aumentam a sua vulnerabilidade, precariedade e maior risco de violência sexual quando em situação de catástrofe natural e confrontos bélicos. A própria ONU o reconhece e, por essa razão, articula as políticas de combate às alterações climáticas com questões de género.

 

“A nossa perspetiva é sempre a de somar gente e experiências diversas, por isso temos um manifesto que procura incluir e não excluir. Se conseguirmos juntar o movimento social ao movimento sindical e partidário, a agenda da igualdade terá mais força e centralidade. É nesse sentido que estamos a trabalhar”.

 

Esperam contar com o apoio de sindicatos e partidos políticos? Esse apoio será importante ao nível logístico e para o reforço da capacidade de mobilização de participantes na Greve Feminista?

Os sindicatos e os partidos políticos são importantes espaços de organização das pessoas e de reivindicação de direitos. Queremos muito que se juntem à Greve, porque esse é também o seu espaço, e temos muita confiança em que isso venha a acontecer. A nossa perspetiva é sempre a de somar gente e experiências diversas, por isso temos um manifesto que procura incluir e não excluir. Se conseguirmos juntar o movimento social ao movimento sindical e partidário, a agenda da igualdade terá mais força e centralidade. É nesse sentido que estamos a trabalhar.

 

A Greve Feminista será uma iniciativa exclusivamente de e para mulheres, ou será aberta à participação de homens feministas?

A Greve Feminista pretende demonstrar que as mulheres são a base de sustentação das sociedades, que se nós pararmos, o mundo pára também. Por 24 horas queremos tornar visível o nosso trabalho, queremos que as pessoas todas tomem consciência do tanto que fazemos e em situação tão desigual. O caminho que queremos percorrer é aquele que vai da tomada de consciência à alteração do estado das coisas. Nesse sentido, o apelo é para que as mulheres parem, para que nesse dia não trabalhem nem vão às aulas. Um dia sem trabalho feminino. No entanto, esta Greve tem e terá o apoio de muitos homens. Estar solidário com a Greve Feminista passa por recusar desempenhar as tarefas da colega em greve, passa por se juntarem aos homens que estão já a ajudar na construção da Greve, pensando e organizando as estruturas de apoio que permitirão que as mulheres façam Greve, como sejam a guarda das crianças, a “cantina coletiva”, etc.

 

“Trump e Bolsonaro são protagonistas de escolhas políticas e económicas que encaram a igualdade como inimigo, seja ela a de género ou a racial, e por isso desenvolvem toda uma retórica – que desdenha das conquistas civilizacionais e da evidência científica – para procurarem justificar o segregacionismo e o apartheid social que estão na matriz do seu pensamento”.

 

Como é que perspetiva a emergência de líderes políticos assumidamente misóginos como Donald Trump nos EUA ou Jair Bolsonaro no Brasil? Considera que é uma expressão política de reaccionarismo perante a emancipação das mulheres?

A vitória da extrema-direita é um preocupante sinal. As campanhas de Donald Trump e de Jair Bolsonaro foram em parte construídas tendo por base um discurso misógino e racista. Há toda uma tentativa de fazer passar por natural e normal aquilo que não o é. É um retrocesso gigante e muito perigoso. Trump e Bolsonaro são protagonistas de escolhas políticas e económicas que encaram a igualdade como inimigo, seja ela a de género ou a racial, e por isso desenvolvem toda uma retórica – que desdenha das conquistas civilizacionais e da evidência científica – para procurarem justificar o segregacionismo e o apartheid social que estão na matriz do seu pensamento.

A resposta das mulheres a estas políticas tem sido uma lição de cidadania e ativismo global: da Marcha das Mulheres em 2017 no dia seguinte à tomada de posse de Donald Trump, até ao movimento #EleNão contra Jair Bolsonaro. As mulheres estão a ser protagonistas, porta-vozes das suas reivindicações, estão a escrever a sua história. São os movimentos feministas interseccionais que são a cara e o espaço de resistência à proliferação do ódio. Se por um lado a extrema-direita através das fake news e do populismo direciona o desagrado generalizado que muitas pessoas sentem relativamente à falha do sistema económico e social (as pessoas continuam a ser pobres, a não terem acesso à saúde e educação, etc.) contra as minorias (mulheres, LGBT, pessoas racializadas, indígenas, etc.), são os movimentos feministas que estão a trazer outras respostas mais emancipadoras e igualitárias aos problemas económicos e sociais do mundo.

 

 

 



Fonte: Economico – Politica

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